Abaixo dos olhos
Sobre um sonho que tive em novembro de 2011: http://dormidoseacordados.blogspot.com.br/2011/11/abaixo-dos-olhos.html
Hoje tive um sonho...
Era uma menina que se escondia; se alojava numa casa de antiguidades, pela estreita passagem do corredor.
Em cada porta verdadeira, encontrava-se uma casa de lembranças. Lembranças de quem havia partido deste mundo havia lá suas décadas. As pessoas entravam, desentravam, colhiam conhecimentos e objetos luxuosos. Havia regras. As pessoas só poderiam levar as lembranças. Nada que fosse da instituição, apenas as relíquias dos antigos mortos. A casa tinha uma certa névoa de sentimentos: sentia-se aquela aura de nostalgia; saudade. Sentia-se a história já passada - e bem passada. Mesmo com toda esta misticidade, a casa não cheirava bem. Só os virtuosos entrariam nela e ficariam lá por longos momentos. Era uma sensação ruim que aquela casa roubava. Era um horror, meu caro leitor.
Voltando para mim. Estava eu indo à sala do alemão navegante. A figura dele era quase de um pirata. Muito ouro; máquinas; desejos pessoais. Minha acompanhante pegou lá apenas as riquezas materiais do falecido senhor, aquelas que eu tenho certeza que eram menos valorizadas por ele. Acredito eu que as coisas mais valorizadas são aquelas que nos arrepiam por dentro, que nos remetem a momentos vividos.
Já a mim nada interessava daquela sala, a não ser aquela caixa com uma gaita despedaçada em seu interior. A gaita estava sem o devido revestimento, e era da marca Hering. Na verdade, Hering foi o que chamou minha atenção antes de achar o instrumento no fundo da caixa. Esta, por sua vez, encontrava-se eternamente aberta. Sua tampa deveria estar perdida no meio do furdúncio histórico.
Então, fui à palavra "Hering". Eram letras descoladas do revestimento da gaita. Provavelmente foi o major quem as tirou do lugar de origem. Provavelmente queria ver as coisas com mais veracidade. Penso que queria vê-las como elas realmente eram, principalmente sua pobre e velha amiga gaita. Deve ser por isso que arrancou a capa que a envolvia: para ver o interior dela. Talvez ele acreditava que o que importava não era a beleza exterior. E sim o que o interno nos poderia trazer - curiosidade; mistério. Mas mesmo assim, quis remover e manter as letras que nomeavam a gaita. "Hering". Estavam lá na caixa: todas as letras daquela palavra, separadas, mas cuidadosamente mantidas, e seu instrumento visto de seu interior. Achei curiosa a idéia de guardar cada letra que dava o nome de sua melhor amiga. Foi então que as colhi e guardei cuidadosamente, a fim de não perder nenhuma letrinha.
Saímos da sala. Eu e minha companheira. Olhamos em volta: eram corredores escuros. Havia iluminação, porém as paredes eram de cor escura, um marrom nojento. Dava uma impressão de casa de vô - só que era macabro demais para ser do meu avô. Haviam quadros explicativos nas paredes. Eles diziam de quem eram as lembranças que moravam em cada cômodo, além da história de cada pessoa já falecida.
Tudo correra bem até o momento, mas sempre com um calafrio na espinha.
Voltemos à menina. Mórbida, de cabelos pretos e vestido vermelho. A presença desta era uma melancolia só. Ela nos passava essa impressão de morte, do querer morrer. Ela trazia essa aura de se castigar o tempo inteiro. Ela não parecia triste. Ela estava, afirmo sem dúvidas, revoltada. Com muita raiva, meu caríssimo leitor. Não queria saber de cumprimentos formais, não falava com ninguém, não era educada, e não queria nem fazer parte do que é ser humano. Eu tenho certeza, amigo, de que ela odiava ser humana.
Esbarrava-me com ela de vez em quando, pelos corredores. Encontrei com ela sempre antes de entrar em uma sala diferente, inclusive a mencionada alguns parágrafos acima. A mim ela dirigia a palavra. Palavras de dor, de ódio, cólera. Olhando sempre para os lados, ou para frente - face de quem já havia se conformado com o mundo. O mundo mesquinho e injusto, que parecia ser o que ela vivia.
Desaparecia do nada. Surgia também da mesma forma.
No momento em que me separei de minha companheira, fui observar os corredores. Estes eram muito mais interessantes do que os cômodos. As paredes eram de duas cores: azul e marrom, eu acho. Sentia um veludo nelas. As portas eram pesadas, duras e bem chamativas - eram douradas. Exceto uma. Aquela porta era fina, pintada exatamente como o papel de parede. Parecia uma porta de funcionários, mas os funcionários tinham sua sala, que chamava a atenção também como as outras da casa. Aquela porta, meu deus, era diferente, e me dava medo, mas também curiosidade. Era selada à parede, como um disfarce. Alguém distraído nunca a encontraria. Só que sou observadora.
Tanta era a minha curiosidade, que busquei um jeito de abrí-la. Abri. Dava para uma escada filada às paredes marrons. Um tapete vermelho-aveludado vestia o meio da escada toda. Fechei a porta e senti o silêncio dominar. Tranquilizada, aquele ambiente estava me deixando com menos medo. Não sei se pelo aconchego do mísero tamanho do lugar, ou por estar longe daquela loucura nostálgica.
Estaria mais satisfeita se não houvesse aquela sensação de estar esquecendo de algo. Em mãos eu tinha a lembrança do major. Minha parceira teria mais afazeres desagradáveis. Quis me esconder para livrar-me disto. Lembrei da garota. Subi, então, mais um lance de escada - uns dez degraus, em nome da curiosidade.
Lá estava aquela criatura. Sentada num degrau, junto à parede. Suas mãos encontravam-se no degrau debaixo, junto dos pés. Parecia exausta. Mas não parecia ter exercido grandes atividades. Estava era cansada de seu turbilhão de pensamentos. Seu olhar dizia que ela não aguentaria mais tempo que aquilo. Deveria definhar dali a alguns instantes. Vestia um casaco azul escuro por cima do mesmo vestido vermelho, e usava meia-calça de lã preta. Ela contava sobre merecimento e castigo.
Tamanha atenção que aquilo tudo me tomou que não vi o moleque ao lado dela. Não se pode chamar de menino ou garoto, pois parecia velho demais para tal. Porém imaturo demais para um rapaz. Digo isto pela insensatez deste. Havia uma faca em sua mão, e uma convicção de que nada ali estava errado. Por mais que se tentasse, era impossível impedir aquele ato asqueroso. Era uma faca de cozinha, com cerras. O moleque estava submisso à ideia fixa dela. Por mais que se implorasse, chorasse, ou gritasse, nada poderia desencravar aquilo. Já tinha sido fincado, recortado, separado, e castigado.
A menina queria morrer. E foi morta. Não foi bem um suicídio. Nem infanticídio. Ela entorpecera o moleque para que seguisse sua vontade. Há quem queira ser cremado, congelado ou doado para hospitais. Aquela maluca queria assistir sua própria morte. Queria ter a própria cabeça serroteada. Escolheu um local para ser atingido pela faca.
Foi logo acima do nariz e abaixo dos olhos que foi recortada, grosseiramente, aos pouquinhos - por causa do tamanho da faca. Sua cabeça foi então cortada, cuidadosamente, para que lhe sobrasse um cérebro intacto o suficiente pra ela observar-se morrer. Seus olhos morreram segundos depois de sua cabeça ser destrinchada o suficiente para ver-se, sem desligar suas terminações neurais do corpo. A menina viveu, por segundos, sem o tampo de sua cabeça, com os olhos fora dela, só pra sentir-se devidamente castigada.
Saciei minha garganta com um extenso e agudo som, de medo e desespero, enquanto tropeçava em todos os degraus abaixo, e corria na direção contrária para todo o sempre.
Já era dia, e ao sair da casa, ainda estava em minhas mãos os tipos do nome da gaita.
Comentários
Postar um comentário